sábado, 13 de junho de 2009

Basta de lero lero… (por Deolinda Vilhena)

Artigo de Deolinda Vilhena (jornalista, produtora, Doutora em Estudos teatrais pela Sorbonne, pós-doutoranda em Teatro na ECA/USP), publicado no terra, em 12/6/2009

Nada como ser coerente na vida, e em discípula de André Malraux que dizia em Les voix du silence que “a arte, como o amor, não é prazer mas paixão”, aproveito a data de hoje, Dia dos Namorados, para declarar minha eterna paixão pelo (bom!) teatro. Essa paixão alimenta minha eterna esperança, ainda que quase sempre termine em desilusão, com os rumos que ele toma nessa terra sem dono - para não dizer coisa pior, a exemplo do que disse o Carlos Minc, há uns dias atrás - em que se transformou esse nosso Brasil.

A acreditar na atual Constituição e nos deuses da Democracia, o atual governo chega ao fim em 31 de dezembro de 2010, ou seja, daqui a um e meio. Oito anos confiados a esse governo por uma significativa parcela da população, governo que entrará para a história do “nunca, jamais se viu nesse país” por ter passado seis anos e meio discutindo e rediscutindo as possíveis alterações de uma lei, a tal lei Rouanet.

Aliás, no lugar do Embaixador Sérgio Paulo Rouanet, eu já teria entrado com uma ação judicial exigindo que tirassem meu nome da dita cuja, porque do jeito que a coisa anda o coitado deve passar o dia com a orelha em chamas…

Faço parte da minoria que perdeu o jogo democrático, não elegi esse governo por não acreditar ser possível governar sem projeto, coisa que o Partido dos Trabalhadores ignorava. Incompetência ou prepotência o tempo dirá. Porém, se levarmos em conta as tentativas fracassadas de eleger um presidente, não se pode dizer que faltou tempo hábil para preparar um. E, se há uma pasta onde essa ausência de programa excedeu, ela pasta é a da Cultura, na qual vivemos há seis anos e meio em ritmo de “ensaio”, privando toda uma classe de “estreias”.

Desde que, há dois anos, fui obrigada a voltar do meu doce e voluntário exílio parisiense, perdi a conta dos e-mails, convites, abaixo-assinados e convocações que recebi para participar das “discussões” em torno das propostas de alteração na Lei Rouanet. Com medo de parecer “afrancesada”, e temendo ser malhada como de hábito acontece nesse país, mesmo não tendo vocação e muito menos talento para ser torturada como fizeram com a nossa “brazilian bombshell”, aceitei alguns convites. Na maioria das vezes sofri calada diante das sandices discutidas.

Confesso aqui, publicamente, o meu martírio. Essas discussões sem fim e sem conteúdo soavam (soam!) como um castigo para quem passou cinco anos e meio estudando num país - a França, berço do método e do cartesianismo - onde o debate é prática ensinada nas escolas, e onde qualquer criança de 10 anos dá um banho em 90% dos nossos pseudo-intelectuais, no quesito argumento, simplesmente porque a “berceuse” delas inclui uma boa dose de tese, antítese e síntese.

Mas depois de dois anos de mordaça voluntária, decidi abrir a boca, soltar o verbo e desde já peço desculpas aos navegantes usando a máxima de Montaigne, “je donne mon avis non comme bon mais comme mien”. Algo como, dou a minha opinião não como boa, mas como minha…

Em primeiro lugar gostaria que alguém me explicasse e/ou justificasse o baixíssimo, para não dizer irrisório, orçamento do ministério da Cultura? Isso não tem nada a ver com a existência das Leis de Incentivo. Isso é a prova cabal do desinteresse dos governantes desse país pelo quesito cultura.

Contraditório desinteresse uma vez que, o mesmo governo permite que empresas como a Petrobras, o Banco do Brasil e o BNDES, juntos, invistam mais em cultura do que o próprio ministério por ela responsável.

Não podemos negar que a Lei Sarney, ancestral da combalida Lei Rouanet, foi na visão de muitos - e entre eles o grande Celso Furtado, cuja única mancha na biografia foi ter sido ministro da Cultura de José Sarney - foi uma grande conquista da sociedade brasileira num momento difícil de transição democrática, pois tinha como objetivo permitir à sociedade escolher diretamente o que ela queria ver produzido.

Mas, a ilusão durou pouco, e o que se viu em seguida foi um Estado transferindo suas obrigações, seus deveres e last bu not least seu próprio fundo de caixa para as mais diversas empresas, entre as quais muitas estatais, como as citadas pouco acima.

Constato, sem saudosismo algum e muita vergonha, que os ditadores desse país foram os únicos a esboçar, um arremedo talvez, políticas públicas nesse país na área da cultura. Porque ao contrário da esquerda mundial que via a cultura como uma estratégia para o desenvolvimento social e econômico de uma nação, no Brasil essa visão pertenceu sempre à direita no que ela tinha de pior, a ditadura Vargas e a ditadura militar, talvez porque mesmo de maneira equivocada eles tivessem um projeto de Nação.

Teixeira Coelho disse em um artigo que “as ditaduras não gostam de projetos que transferem, do Estado para a sociedade civil, parte do poder de decidir o que vai ser feito em cultura”. Concordo com a afirmação dele, mas discordo da solução encontrada pelo governo. Com que direito se dá à iniciativa privada o poder de decidir o que será feito em matéria de cultura no país, e, mais grave, fazendo isso com dinheiro público?

A iniciativa privada pode - e deve - produzir o que ela bem entender. Desde que o faça, com o seu próprio dinheiro.

Longe de mim, incentivar a criação de uma arte oficial, mas acho ridículo se falar dos riscos do dirigismo cultural que corre nossa frágil democracia. Cá entre nós vocês acham que a França é um país onde existe arte oficial ou dirigismo cultural? Nem o mais insano dos insanos ousaria afirmar isso, e, no entanto, a França é o país onde o Estado mais investe em cultura por habitante no mundo.

Mas se é para encarar o dirigismo cultural, confesso que nessa matéria integro a turma que acredita que o menos nocivo dos mecenas ainda é o Estado, desde que democrático de direito. Ao dirigismo cultural implantado pelo marketing coorporativo prefiro o do Estado. Talvez porque tenha compreendido há muito que a democracia nunca será culturalmente pluralista, contrariamente ao que se imagina, porque haverá sempre uma preferência a determinar uma moda, além da opinião pública.

Infelizmente o pluralismo não existe nesta matéria. Há o politicamente correto. Eu desejaria que fosse pluralista, mas não creio que seja possível e sei que haverá sempre escolhas abusivas. Todos os ministérios sempre fizeram e todos os grupos de pressão sempre fizeram escolhas abusivas. Mesmo boas escolhas são escolhas abusivas. Mesmo no século XVII quando Luís XIV apóia Molière, Corneille, Racine, ele é abusivo porque muitos foram preteridos e, talvez não fossem tão bons quanto, mas tivessem também valor.

E o sistema continua abusivo, continua sendo a escolha de uma época e de um grupo de pressão que até pode impor qualidade, mas que impõe o seu gosto. Infelizmente a democracia não é democrática em matéria de cultura contrariamente ao que se crê porque, com efeito, há sempre um grupo social que dirige os outros e que impõe, contra os quais as pessoas não ousam ir contra, com isso não se pode dizer que a democracia é pluralista em matéria de cultura.

Ariane Mnouchkine costuma dizer que o teatro irriga necessariamente a sociedade como um todo, talvez por isso as grandes empresas não se interessem por ele, mas com certeza isso legitima, sem complexo, o modo de financiamento público do teatro. E, Mnouchkine diz mais: “não é ilegítimo nem ilógico pensar que a cultura deveria ser subvencionada por todos os ministérios aos quais presta serviços incomensuráveis. É notório que somos bons para a saúde mental, que somos preventivos contra a delinqüência e a violência, eficazes contra a ignorância, portador da honrosa imagem da França no exterior, nós somos, por conseguinte, indispensáveis aos ministérios da Saúde, da Justiça, do Interior, da Educação nacional, do Turismo e das Relações exteriores, sem esquecer a Juventude e os Desportos e os Assuntos sociais”.

Entretanto, ao menos no nosso Brasil, ainda que a Constituição brasileira de 1988 no artigo 215 diga: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”, a realidade é bem distinta.

Tudo está errado desde a origem. A criação das leis de incentivo fiscal tinha como objetivos trazer recursos da iniciativa privada como um paliativo para a incapacidade do governo de assumir suas responsabilidades. Nesse país onde a perversão parece endêmica, o que fez o Estado? Liberou geral. Transferiu para a iniciativa privada a responsabilidade pela criação/gestão de uma política cultural, em comum acordo com a classe artística dominante que, estabeleceu de imediato excelentes relações com os diretores de marketing.

Não vou citar exemplos, mas Deus é testemunha do beija-mão promovido pelos artistas e seus captadores de recurso nos escritórios desses diretores de marketing. Não é preciso esperar a abertura da caixa preta do Ministério da Cultura - aliás, já permitiram o acesso aos arquivos da ditadura? - para conferir os nomes dos principais ídolos nacionais envolvidos. Basta conferir nos programas das peças patrocinadas pelas principais empresas nos anos 80/90 e descobrir quem estava de conluio com quem. Tinha gente que achava que patrocínio era renda vitalícia. Os captadores de recursos fizeram a festa. Sei de gente que com cinco anos de profissão construiu um patrimônio que inclui apartamentos no Leblon, casa em Búzios…em compensação, sei de gente, que com mais de 30 anos de teatro não conseguiu comprar um kitchenette na Prado Júnior.

Essas discussões de hoje são - grosso modo - um bate boca entre duas correntes da classe artística nacional, a dominante - que não quer perder privilégios, e a dominada - cansada de apanhar e disposta a brigar pelo seu quinhão.

De um lado, a classe dominante, a que tem acesso aos diretores de marketing, dona dos espetáculos que integram a chamada “indústria cultural” cujo objetivo principal é o lucro; não quer que se mexa na Lei porque não se mexe em time que está ganhando.

Do outro, a classe dominada, cansada de viver à margem produzindo espetáculos engajados com a pesquisa de novas linguagens cênicas, a elaboração de uma estética, normalmente frutos de meses de ensaios regados a sanduíches e café.

Depois de seis anos e meio de bate boca, de incompetência, aliadas a tal perversão endêmica da qual falei linhas acima, chegou a hora da solução. E, essa solução passa obrigatoriamente, pela definição de um conjunto de regras claras e rigorosas a serem aplicadas e respeitadas. Pois como dizia Albert Camus em A Queda “quando as pessoas não têm caráter, é importante que haja um método”.

E esse método deve levar em consideração alguns tópicos ausentes desse debate quase tão inepto quanto ininterrupto: não existe criação artística sem educação artística e não existe teatro sem público.

No lugar de brigarmos por Leis de Incentivos deveríamos nos empenhar em lutas que obrigassem o Estado a assumir suas responsabilidades. Formando professores, fazendo valer a obrigação dos cursos de Educação artística nas escolas, do maternal ao último do Ensino médio, permitindo a formação de platéias, que garantirão num futuro distante, talvez, mas seguro, que os teatros desse país não mais vivam à míngua e, os que dele vivem percam essa postura de mendigos.

Assim como no lugar de brigar por cotas e dividir um país deveríamos lutar para que a escola pública fosse o melhor destino para todos, sem distinção de classe ou de cor de pele. Que o exemplo fosse dado de cima, obrigando vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, governadores, ministros de estado e presidente da república a educarem seus filhos e netos nas escolas municipais, estaduais e federais.

Mas nesse país quando algo funciona os picaretas se reúnem para destruí-la. É mais fácil acabar com o exame da Ordem dos Advogados do Brasil sob pretexto de que o alto índice de reprovação é prejudicial aos pseudos-advogados formados pelos “trocentos” cursos das pseudo-faculdades criadas com o aval do Governo do que fechar todos os cursos, valorizando o bom, valorizando a meritocracia, princípio republicano básico.

Mas lá vou eu fugindo do nosso tema…

Uma das provas da nossa imaturidade, e ingenuidade, no tema chegou ao meu conhecimento numa discussão recente na Escola de Belas Artes na Bahia. Fui surpreendida por uma informação de que existe há anos uma luta para que a Cultura receba o equivalente a 2% do orçamento da União. Expus à platéia a minha surpresa, explicando que a França desde 1936 e mais intensamente desde 1947 graças a um homem chamado Jean Vilar lutou durante décadas para que 1% do seu orçamento fosse destinado à Cultura. Fato que só seria possível em meados da década de 80, após a eleição presidencial de maio de 1981, de François Mitterrand que deu a Jack Lang, primeiro ministro da Cultura socialista, carta branca para tornar realidade esse sonho. E, mesmo depois de mais de meio século de lutas, na França de hoje a realidade não é mais essa. Como podemos nós, engatinhando, saindo das fraldas nessa questão, acreditar que podemos obter os tais 2%? É a hora de usar aquele conhecido bordão “menos, gente…menos”.

Na verdade o que falta ao nosso Brasil, além de maturidade da classe envolvida nessa história, são homens da envergadura de André Malraux, François Mitterrand e Jack Lang. Homens que por voluntarismo político e crença nas artes mudaram o rumo da história das políticas públicas na área da cultura na França fazendo da exceção cultural francesa um exemplo mundial.

Por que falo tanto da França? Porque é o país do primeiro ministério da Cultura, que esse ano comemora 50 anos, o país no qual o Estado mais investe em cultura por habitante no mundo, e a parte do Estado não vem apenas do ministério da Cultura, mas do ministério des Affaires étrangères et européennes, como eles chamam o ministério das Relações Exteriores, lembrem-se que a diplomacia cultural é uma invenção francesa e tem sido usada com frequência como arma de charme; do Ministério da Educação, pois como formar platéias sem passar pela Educação e vários outros.

Sou francófona e francófila assumida, mas não perdi o senso crítico, sei que existem proporções a serem guardadas, que o modelo francês não é reprodutível, e que o paraíso não existe. Mas, a política cultural francesa deveria ser, se não um exemplo, um modelo. E, como tal, ser analisado e não copiado, mas aperfeiçoado e adequado aos nossos tristes trópicos. Costumo comparar a política cultural francesa à democracia, o regime que na prática se demonstra o mais perto possível do ideal.

No dia em que um dos nossos políticos for capaz de pronunciar um discurso como o de Jack Lang, então com apenas 42 anos de idade, no dia 17 de novembro de 1981 diante da Assembléia Nacional francesa (veja aqui o site) e anunciar que o orçamento do Ministério da Cultura vai ser dobrado, que será fixada uma data objetivo para alcançar o sonhado 1%, para lembrar que toda ação governamental é cultural; que não deve existe apenas um, mas 27 ministros da Cultura no governo; para lembrar que todos os brasileiros e não apenas uma única classe social, tem direito à cultura, para identificar o combate da esquerda a um manifesto cultural e colocar o ministério pelo qual ele é o responsável “a serviço de um projeto de civilização”, nesse dia nós teremos percorrido a metade do caminho em busca da implementação de uma verdadeira política pública para o teatro brasileiro.

Enquanto não formos capazes de produzir e eleger homens com a envergadura de Malraux, Mitterrand e Lang, enquanto nosso Congresso Nacional tiver a cara que vemos diariamente nas televisões e nos jornais, nós vamos continuar discutindo, discutindo, discutindo… e nossas políticas públicas na área da cultura farão companhia ao sonho do Brasil país do futuro, que como dizia uma canção de Toquinho, “futuro que insiste em não vir por aqui”.

PS - Não poderia fechar a coluna de hoje sem falar da tragédia do AF-447. Para isso faço minhas as palavras de Antoine Pouillieute, Embaixador da França no Brasil: “O Ano da França no Brasil é um ano de partilha, de alegrias e de tristezas. Hoje, este evento está de luto pelo desaparecimento do voo AF-447. Nossos pensamentos devem se voltar para as 228 vítimas desta tragédia. Eles devem também dirigir-se a sua família a quem devemos a verdade e fraternidade: a verdade ao dizer o que nós sabemos, tudo o que sabemos; a fraternidade para ajudá-los a superar o inaceitável e fazer de um conjunto de destinos destruídos uma humanidade superior. Os desaparecidos do voo AF-447 estão em nossos corações: tenhamos um instante de recolhimento por eles. Obrigado, Antoine Pouillieute, Embaixador da França no Brasil”

Deolinda Vilhena é jornalista, produtora, Doutora em Estudos teatrais pela Sorbonne, pós-doutoranda em Teatro na ECA/USP com bolsa da FAPESP

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