segunda-feira, 9 de novembro de 2009

ADORÁVEL DESGRAÇADA

O bacana do teatro é que durante a peça a gente fica imaginando quem conhecemos que seja aquele personagem que estamos vendo. Faz um tempo, talvez 5 anos, morava sozinha no Rio uma mulher de meia idade, num qto e sala em Copacabana. Durante a peça eu fiquei me perguntando o que essa minha amiga sofreu, sentiu, viveu naquele apartamento, se falava sozinha, como era a sua comunicação com os amigos? Será que ela tinha sede de vingana pra cima de alguém? Pois nao é que um dia pegou fogo no apartamento dessa minha amiga e ela ficou sem casa? Sem grana pra pagar aluguel, voltou pra barra da saia da familia em São Paulo. E isso com 50 anos e la vai!

Pois passei a peça "Adoravel Desgraçada" inteira me lembrando desta amiga. E aí tive a grata surpresa de conhecer uma mulher também solitária, sofrida, com uma sobra de esperança no olhar e uma vontade de viver, ou re-viver, uma história ainda nao acabada. No papel de Guta, Débora Duarte vive. Nada de interpretação: é vida. Guta existe. E nos faz ter compaixão, pena, inveja, cumplicidade. Fiquei boquiaberto com a intensidade da entraga da Débora Duarte neste pepel instigante e desafiador. A variação das entonações e no timbre da voz nos faz ser intimos daquela mulher, podemos ouvir seus sussuros e entender prefeitamente o que ela diz. Adorável Debora.

Débora Duarte conta a história, criada por Leilah Assumpção, de Guta, Maribel, Tereza, o porteiro e Silveirinha. E o mais legal é que ela divide com a platéia seus pensamentos, como se nós fossemos uma televisao, uma planta, uma geladeira de sua casa. Guta conversa com Deus. Cobra Dele, e nao obtém respostas. Mas elas chegam aos solavancos. Sabe quando dizem que quando uma coisa ruim chega, sempre chegam juntas várias outras? Desgraça pouca, bobagem. Pois com Guta acontece isso. Coitada. Da pena. E a gente entende, e até se torna cumplice, do desfecho surpreendente da peça.

A cenografia (pena q nao tenha sabido de quem é) é um espetáculo. Sempre quis usar mangueirinhas de plástico transparentes em meus cenarios, mas nunca tive a idéia que o cenógrafo teve de fazer das mangueiras, paredes. Lindo! Gostei muito de ver Guta escrever na parede à giz!! E a iluminação do espetáculo entendeu o jogo do apartamento e tira partido da mangueira para criar sombras e brilhos. Um casamento perfeito. O figurino que ela usa, tem recortes e sobras de uma memória viva de Guta, a personagem de Débora. Gosto muito.

A direção do Otavio Muller é criativa e deixa Débora interpretar (melhor: dar vida) a Guta ao seu modo, ele nao interfere na ação de Guta que acontece naturalmente. Gostei muito de ver Guta tirar partido do cenário par fazer uma brincadeira de harpa em harmonia com a sonoplastia da peça. Alias, pausa na direçao para aplaudir a sonoplastia. Sons muito bem escolhidos, na medida, na altura, e nos decibéis necessários para que a peça seja um pedaço de vida e nao uma interpretação da vida. Ponto também para a direção que delicadamente conduz o espetáculo com respeito ao premiado texto (eleito o melhor texto teatral de 1994, segundo a Associação Paulista de Críticos de Arte - APCA) e ao talendo grandioso da Débora Duarte.

Adoravel é o que melhor representa Guta. Desgraçada é a sua vida. E vamos rir e nos emocionar com esta mulher que pode ser uma amiga sua, uma vizinha, uma conhecida. Todas reais e verdadeiras.

Belissimo espetáculo que eu recomendo. Assitam, vale muito à pena. Aplausos de pé!